sexta-feira, 22 de maio de 2009

67.68


André Kertesz, Banco de Jardim, 1962

Tinha cumprido 67 anos. O seu pai tinha partido com a mesma idade. Sentia-se perseguido pela ideia de uma repetição, de uma qualquer maldição familiar que o levasse também para outro lugar, para a escuridão. Virava-se para Deus, sabendo que nunca acreditara em nenhum desses antídotos para a morte. Era apenas um subterfúgio, uma invenção para não se permitir reparar na velocidade do tempo. “Ainda há pouco nos fomos deitar e já é de noite outra vez”. O tempo. A reforma tinha chegado havia dois anos e ainda não encontrara a melhor forma de ocupar o tempo, se é que existia uma forma maior de ocupar o tempo, se é que o tempo se deixava ocupar por alguma coisa. O tempo! Os miúdos a aprenderem a andar, as correrias para o hospital, as urgências que eles fazem questão de apresentar; as primeiras palavras, a escola, as namoradas. Já todos homens, com os seus filhos, as suas correrias para o hospital, as suas urgências... “Foi ontem”. A guerra, a mãe a costurar à luz da vela, as sopas que improvisava com farinha e que não comia para que não lhes faltassem na boca. O serviço militar na Índia, os anos de África. Para que servira tudo isso? Já nada estava por ali. Eram histórias de avô nas quais até ele já sentia alguma dificuldade em acreditar. Aquela bela mulher, nascida aos braços do Índico, com quem decidira casar, agora com sessenta anos e as marcas da vida. Mas ainda bela. Aquela mulher e o sofrimento que passaram juntos; a oposição firme, castradora dos pais dela ao seu casamento; a sua determinação em avançar, em ripostar. As alegrias que viveram juntos. De novo os filhos, os dias de sol, as horas em que nasceram e em que depois chamaram pela primeira vez “pai”. “Já é de noite! Estás aí? Vem deitar-te comigo como se a vida fosse de vinte anos outra vez!”. Mas a vida já não tem vinte anos. Agora o coração lembra-se da morte. Como se a morte não pudesse surgir aos vinte anos! Ele gasta pincéis para disfarçar o tempo com tons de vida, para entreter a morte, para a demorar, para que ela não se lembre da sua morada, para a enfeitiçar. Pede sopas de farinha, colos de mãe que já não está; pede luz solar, rebentos de flores, voos de andorinhas, mais uma vez, só mais uma vez…Mas todos os lugares estão despidos de infância. A vida não deixa espaço para parágrafos.
“Amanhã cumpro 68.”

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Éolo


Éolo - Pormenor de "O nascimento de Vénus", de Sandro Botticelli

“Sabes de onde vem o vento?” – perguntou-me o menino.
“Não.” – respondi, sem grande convicção.
“O vento vem das árvores.”
“Das árvores?”
“Sim, das árvores. Quando as folhas das árvores se mexem e balançam, fazem vento. Quando as árvores param, já não há vento. Percebes?”
Ajudei-o a descer do muro alto para que não se magoasse. Trazia um sorriso iluminado pelo contentamento de me ter ensinado algo tão evidente.
De facto, como não tinha reparado antes?
Agora sei. O vento vem das árvores.