quarta-feira, 25 de março de 2009

Grito


Manabu Mabe - "Grito" 1958 (Laca sobre tela)


Há dias assim, concebidos como um grito.
Lua e Plutão numa conjura.
E os poetas enlouquecem.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Duvidar




“ – Sabe o que me atraiu em si, em El Toboso, padre? Não foi por ser o único homem culto que lá existe. Não me venha falar de intelectuais ou de cultura. O que me atraiu em si foi eu pensar que era o meu oposto. Um homem cansa-se de si mesmo, do rosto que vê todos os dias ao barbear-se, e todos os meus amigos se situavam nos mesmos moldes que eu. Fui a reuniões do Partido em Ciudad Real, depois da morte de Franco, e o tratamento era de ‘camaradas’ e tínhamos medo uns dos outros porque nos conhecíamos como a nós próprios. Citávamos Marx e Lenine uns aos outros como senhas, para provar que podíamos merecer confiança, e nunca falávamos das dúvidas que nos assolavam o espírito nas noites em claro. Senti-me atraído para o senhor porque pensei que era um homem sem dúvidas. Senti-me atraído para o senhor, creio, de certo modo por inveja.
- Como estava enganado, Sancho. As dúvidas não me largam. Não tenho a certeza de nada, nem sequer da existência de Deus, mas duvidar não é trair, como vocês, comunistas parecem pensar. Duvidar é humano. Oh, eu quero acreditar que tudo é verdade, e esse querer é a única coisa certa que eu sinto. Também quero que os outros acreditem. Talvez um pouco da sua crença possa passar para mim. Acho que o padeiro crê.”

in "Monsenhor Quixote", Graham Greene

sábado, 21 de março de 2009

Jejum


















Sim, também faço jejum; jejum de alimentos e de palavras. Bebo chá e água engarrafada, limpo o corpo e espero pela pureza de espírito. Ah, a espera!...

Apetece-me pôr todas as coisas velhas (ou novas) e inúteis porta fora, atirá-las para onde nem o universo possa recebê-las. Que tormento é viver agarrado a coisas inúteis!... E, pensando bem, o que há de verdadeiramete útil por aí? (vou pensar)

Sim, também faço jejum, não porque esteja à espera de uma qualquer salvação, mas porque, sem limpar o corpo e a alma do esterco que os invade, nada de belo poderá entrar.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Pássaros negros

"O pássaro livre" Dulce Osinski (óleo sobre tela)


Desceste as escadas e vestiste a rua de intenso vermelho. Pergunto-me se poderás desatar os pássaros negros que encaminhei para a tua janela. “Gostaste da camisola?”, as lágrimas a rasgarem-te o rosto, e eu sem dizer nada. Estás encostada à porta do nosso quarto com o mundo a desmoronar-se nos teus braços, à espera. O silêncio apoderou-se do teu corpo como um pecado. Sais, e nesse instante abates o último sopro de esperança que há em mim; levas contigo os sonhos, a memória, o lugar íntimo das coisas. As rapaces virão para me atormentar, e então lamentarei os espaços cobertos de ausência, a destruição do dicionário do amor.
Penso no teu vestido vermelho a acariciar a calçada. Demasiados serão os homens que te consumirão de desejo. Quantos serão capazes de te olhar?

segunda-feira, 16 de março de 2009

Tampa inviolável



Na embalagem lia-se "Tampa inviolável". Para que serve uma tampa senão para se abrir? Imagino uma vida inviolável, pré-concebida como uma tampa. As horas que se contam como factos, os olhares sempre iguais sobre as coisas eternamente repetidas, luas que nunca chegam a ser novas, sempre tão cheias em si mesmas.
"João, não te enerva esta gente que recebe a vida como uma merda qualquer?"

Como tampas invioláveis, aprisionando venenos, tantas vidas à espera de serem abertas. Que desperdício!...