segunda-feira, 13 de julho de 2009

Inocência


Apagam-se as luzes na Índia. Apagam-se as luzes dos amigos, dos irmãos, dos amantes. Apagam-se as luzes de Setembro. E no olhar de Helena.
Espreito a criança que corre, pés descalços na terra vermelha de África. Sigo o seu rosto até ao topo da árvore. E espero.
Alguma vez terei sido inocente?

terça-feira, 16 de junho de 2009

Dormindo


-Quando estou a dormir, nado.
-O quê?
-Quando estou a dormir, nado.
-Ora essa!? Como se pode nadar enquanto se dorme? E, além disso, tu nem sequer sabes nadar.
-Enquanto sonhamos, podemos fazer o que quisermos.
-Sim, isso é verdade. Ainda ontem sonhei que estava a comer uma deliciosa refeição de ervas tenras.
-Sonhaste, não. Estavas a comê-las.
-Não, estava a dormir.
-Sim, estavas a dormir, mas estavas a comê-las.
-Não, estava a sonhar que estava a comê-las.
-Então não disseste que eram deliciosas? Estavas a comê-las.
-Pois, acho que tens razão. Foram as ervas mais deliciosas que comi até hoje. Ainda estou a sentir aquele sabor, aquela seiva!...
-Exacto. Eu, quando estou a dormir, também nado melhor. Penso que tudo é melhor quando estamos a dormir.

O gafanhoto sacudiu a água e deu um salto. A abelha limpou as ervas da noite e voou.

domingo, 14 de junho de 2009

O dono do Mundo


Os senhores engravatados leram o contrato com ar de enfado. Quando terminaram, voltaram-se para mim e esboçaram um sorriso socialmente correcto.
- Concorda com as condições do contrato?
- Sim – Respondi, sem reflectir. Afinal, era para isso que ali estava; assinar e despachar aquilo depressa.
Quando saí para a rua, contrato na mão a provar a minha nova posse, nem queria acreditar: tinham-me feito dono de um pedaço do planeta! Dei por mim a pensar em como tudo isto teria começado. Quem teriam sido os primeiros engravatados a decidir que pedaço do planeta cabia a quem?
Entrei no carro e dirigi-me ao meu quinhão, essa coisa animal que herdámos dos tempos em que tínhamos o corpo completamente coberto de pêlos: o território.
Quando cheguei e vi a nova casa com o belo jardim em volta, pensei: “Talvez seja melhor começar a urinar por aí, pelos quatro cantos do relvado, para demonstrar que tudo isto me pertence”.
Da próxima vez, quero o meu quinhão de Neptuno.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

67.68


André Kertesz, Banco de Jardim, 1962

Tinha cumprido 67 anos. O seu pai tinha partido com a mesma idade. Sentia-se perseguido pela ideia de uma repetição, de uma qualquer maldição familiar que o levasse também para outro lugar, para a escuridão. Virava-se para Deus, sabendo que nunca acreditara em nenhum desses antídotos para a morte. Era apenas um subterfúgio, uma invenção para não se permitir reparar na velocidade do tempo. “Ainda há pouco nos fomos deitar e já é de noite outra vez”. O tempo. A reforma tinha chegado havia dois anos e ainda não encontrara a melhor forma de ocupar o tempo, se é que existia uma forma maior de ocupar o tempo, se é que o tempo se deixava ocupar por alguma coisa. O tempo! Os miúdos a aprenderem a andar, as correrias para o hospital, as urgências que eles fazem questão de apresentar; as primeiras palavras, a escola, as namoradas. Já todos homens, com os seus filhos, as suas correrias para o hospital, as suas urgências... “Foi ontem”. A guerra, a mãe a costurar à luz da vela, as sopas que improvisava com farinha e que não comia para que não lhes faltassem na boca. O serviço militar na Índia, os anos de África. Para que servira tudo isso? Já nada estava por ali. Eram histórias de avô nas quais até ele já sentia alguma dificuldade em acreditar. Aquela bela mulher, nascida aos braços do Índico, com quem decidira casar, agora com sessenta anos e as marcas da vida. Mas ainda bela. Aquela mulher e o sofrimento que passaram juntos; a oposição firme, castradora dos pais dela ao seu casamento; a sua determinação em avançar, em ripostar. As alegrias que viveram juntos. De novo os filhos, os dias de sol, as horas em que nasceram e em que depois chamaram pela primeira vez “pai”. “Já é de noite! Estás aí? Vem deitar-te comigo como se a vida fosse de vinte anos outra vez!”. Mas a vida já não tem vinte anos. Agora o coração lembra-se da morte. Como se a morte não pudesse surgir aos vinte anos! Ele gasta pincéis para disfarçar o tempo com tons de vida, para entreter a morte, para a demorar, para que ela não se lembre da sua morada, para a enfeitiçar. Pede sopas de farinha, colos de mãe que já não está; pede luz solar, rebentos de flores, voos de andorinhas, mais uma vez, só mais uma vez…Mas todos os lugares estão despidos de infância. A vida não deixa espaço para parágrafos.
“Amanhã cumpro 68.”

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Éolo


Éolo - Pormenor de "O nascimento de Vénus", de Sandro Botticelli

“Sabes de onde vem o vento?” – perguntou-me o menino.
“Não.” – respondi, sem grande convicção.
“O vento vem das árvores.”
“Das árvores?”
“Sim, das árvores. Quando as folhas das árvores se mexem e balançam, fazem vento. Quando as árvores param, já não há vento. Percebes?”
Ajudei-o a descer do muro alto para que não se magoasse. Trazia um sorriso iluminado pelo contentamento de me ter ensinado algo tão evidente.
De facto, como não tinha reparado antes?
Agora sei. O vento vem das árvores.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

E se amanhã chover?



Se amanhã chover,
As crianças brincarão, pés descalços pelos pátios,
loucas de prazer.
Se amanhã chover,
Os anjos perderão os seus refúgios,
nas planícies desamparadas do Bangladesh.
Se amanhã chover,
As mãos dos deuses plantarão insuspeitados jardins,
nas areias desertas de Atacama.
Se amanhã chover…

domingo, 12 de abril de 2009

Não há ninguém à minha espera



Transformação, metamorfose, talvez ressurreição. Celebro a festa do silêncio.
O vento penetra nos ramos das árvores. Dançam como dois amantes.
Não há vozes, nem cantos de pássaros.
Não há ninguém à minha espera.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Maya


Acordei trauteando "Vem viver a vida, amor". Passaram 35 anos e a mãezinha continua por aí.
Já não tenho medo das caves desertas pela noite, dos castigos no quarto escuro, dos uivos do L., dos galinheiros abandonados nos pesadelos, da morte.
A menina beijou a mãe no rosto; acenou-lhe um adeus e ficou a vê-la desaparecer no fim da rua. Amanhã voltarão a beijar-se, com a mesma certeza, como se esse fosse o momento derradeiro.
Uma fracção de segundo.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Grito


Manabu Mabe - "Grito" 1958 (Laca sobre tela)


Há dias assim, concebidos como um grito.
Lua e Plutão numa conjura.
E os poetas enlouquecem.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Duvidar




“ – Sabe o que me atraiu em si, em El Toboso, padre? Não foi por ser o único homem culto que lá existe. Não me venha falar de intelectuais ou de cultura. O que me atraiu em si foi eu pensar que era o meu oposto. Um homem cansa-se de si mesmo, do rosto que vê todos os dias ao barbear-se, e todos os meus amigos se situavam nos mesmos moldes que eu. Fui a reuniões do Partido em Ciudad Real, depois da morte de Franco, e o tratamento era de ‘camaradas’ e tínhamos medo uns dos outros porque nos conhecíamos como a nós próprios. Citávamos Marx e Lenine uns aos outros como senhas, para provar que podíamos merecer confiança, e nunca falávamos das dúvidas que nos assolavam o espírito nas noites em claro. Senti-me atraído para o senhor porque pensei que era um homem sem dúvidas. Senti-me atraído para o senhor, creio, de certo modo por inveja.
- Como estava enganado, Sancho. As dúvidas não me largam. Não tenho a certeza de nada, nem sequer da existência de Deus, mas duvidar não é trair, como vocês, comunistas parecem pensar. Duvidar é humano. Oh, eu quero acreditar que tudo é verdade, e esse querer é a única coisa certa que eu sinto. Também quero que os outros acreditem. Talvez um pouco da sua crença possa passar para mim. Acho que o padeiro crê.”

in "Monsenhor Quixote", Graham Greene

sábado, 21 de março de 2009

Jejum


















Sim, também faço jejum; jejum de alimentos e de palavras. Bebo chá e água engarrafada, limpo o corpo e espero pela pureza de espírito. Ah, a espera!...

Apetece-me pôr todas as coisas velhas (ou novas) e inúteis porta fora, atirá-las para onde nem o universo possa recebê-las. Que tormento é viver agarrado a coisas inúteis!... E, pensando bem, o que há de verdadeiramete útil por aí? (vou pensar)

Sim, também faço jejum, não porque esteja à espera de uma qualquer salvação, mas porque, sem limpar o corpo e a alma do esterco que os invade, nada de belo poderá entrar.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Pássaros negros

"O pássaro livre" Dulce Osinski (óleo sobre tela)


Desceste as escadas e vestiste a rua de intenso vermelho. Pergunto-me se poderás desatar os pássaros negros que encaminhei para a tua janela. “Gostaste da camisola?”, as lágrimas a rasgarem-te o rosto, e eu sem dizer nada. Estás encostada à porta do nosso quarto com o mundo a desmoronar-se nos teus braços, à espera. O silêncio apoderou-se do teu corpo como um pecado. Sais, e nesse instante abates o último sopro de esperança que há em mim; levas contigo os sonhos, a memória, o lugar íntimo das coisas. As rapaces virão para me atormentar, e então lamentarei os espaços cobertos de ausência, a destruição do dicionário do amor.
Penso no teu vestido vermelho a acariciar a calçada. Demasiados serão os homens que te consumirão de desejo. Quantos serão capazes de te olhar?

segunda-feira, 16 de março de 2009

Tampa inviolável



Na embalagem lia-se "Tampa inviolável". Para que serve uma tampa senão para se abrir? Imagino uma vida inviolável, pré-concebida como uma tampa. As horas que se contam como factos, os olhares sempre iguais sobre as coisas eternamente repetidas, luas que nunca chegam a ser novas, sempre tão cheias em si mesmas.
"João, não te enerva esta gente que recebe a vida como uma merda qualquer?"

Como tampas invioláveis, aprisionando venenos, tantas vidas à espera de serem abertas. Que desperdício!...